domingo, 27 de maio de 2007

A boca fala...

A boca fala daquilo de que está cheio o coração (Lc 6,45)

O sentido figurado de coração, na Bíblia, aponta para o interior do homem, de modo bastante amplo. Além dos sentimentos (2Sm 15,13; Sl 21[20],3; Is 65,14), inclui as recordações, as idéias, os projetos e, sobretudo, as decisões. É o lugar simbólico no qual o homem dialoga consigo mesmo para assumir responsabilidades (Dt 7,17). Por isso, para Jesus, o homem bom do bom tesouro do coração tira o que é bom, mas o mau, de seu mal tira o que é mau (Lc 6,45).
Nas relações dos homens entre si e com Deus, o que conta é a atitude interior. Esta não pode ser percebida sem a corporeidade. Daí o corpo falar da intimidade oculta do homem, pelo rosto (Eclo 13,25[31]), pelos olhos (Eclo 14,8-10), pelos lábios (Pr 16,23) e, especialmente, mediante as palavras. Ben Sirac está convicto de que a palavra do homem faz conhecer seus sentimentos (Eclo 27,6[7]). Jesus, em conformidade com a sabedoria de seu povo, afirma que a boca fala daquilo de que está cheio o coração (6,45). Entretanto, a Escritura também conhece palavras e comportamentos que dissimulam o coração (Pr 26,23-26; Eclo 12,16[15]). Daí a importância dos frutos (Lc 6,43-44) para discernir as verdadeiras intenções do coração: não se colhem figos de espinheiros, nem se vindimam uvas de sarças (Lc 6,44). Com efeito, por mais que os comportamentos dissimulem as intenções, o tempo se encarregará de demonstrar, pelas ações e suas conseqüências, a verdadeira intencionalidade dos agentes. Em última análise, porém, cabe ao próprio Deus que não olha a aparência (1Sm 16,7) perscrutar o coração e sondar os rins (Jr 17,10; Eclo 42,18).
Se o olhar divino, que tudo alcança, enche o homem de confiança na justiça de Deus, único que pode julgá-lo e avaliar-lhe as ações, também o impulsiona ao compromisso e à responsabilidade, pois não é indiferente aos olhos divinos dar bons ou maus frutos. Além disso, tal olhar põe-nos de sobreaviso quanto à justiça de nossos julgamentos. Podemos, sempre e de qualquer modo, captar integralmente o coração do outro, mesmo quando se exterioriza na aparência de atos bons ou maus? Mesmo que pudéssemos, sendo pecadores como somos, qualquer juízo moral sobre a vida alheia mereceria a denúncia do Mestre: Por que olhas o cisco no olho de teu irmão, e não percebes a trave que há no teu? (Lc 6,42).